quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Eugénio de Andrade

AS PALAVRAS
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

DESPERTAR
É um pássaro, é uma rosa,
é o mar que me acorda?
Pássaro ou rosa ou mar,
tudo é ardor, tudo é amor.
Acordar é ser rosa na rosa,
canto na ave, água no mar.

METAMORFOSES DA CASA
Ergue-se aérea pedra a pedra
a casa que só tenho no poema.

A casa dorme, sonha no vento
a delícia súbita de ser mastro.

Como estremece um torso delicado,
assim a casa, assim um barco.

Uma gaivota passa e outra e outra,
a casa não resiste: também voa.

Ah, um dia a casa será bosque,
à sua sombra encontrarei a fonte
onde um rumor de água é só silêncio.

OUTRO FRAGMENTO
Entre obscuras sementes a mão recolhe
a luz dos lódãos:
as suas águas são a pedra do crepúsculo.

Entre a festa e a morte
que fizeste da manhã? - pergunta
insiste o vento.

Com um rumor de neve ou de animal
moribundo fiz o anel e a casa:
assim o deserto cresce sobre o coração.

CAVATINA
Obstruído o caminho da transparências
ó me resta reunir os fragmentos do sol nos espelho
se com eles junto ao coração
atravessar indiferente a desordem matinal dos mastros.

Quando mais envelheço mais pueril é a luz
mas essa vai comigo.

FAZ UMA CHAVE...
Faz uma chave, mesmo pequena,
entra na casa.
Consente na doçura, tem dó
da matéria dos sonhos e das aves.

Invoca o fogo, a claridade, a música
dos flancos.
Não digas pedra, diz janela.
Não sejas como a sombra.

Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.

Volta a dizer: homem, mulher, criança.
Onde a beleza é mais nova.

JÁ NÃO SE VÊ O TRIGO...
Já não se vê o trigo,
a vagarosa ondulação dos montes.
Não se pode dizer que fossem contigo,
tu só levaste esse modo

infantil de saltar o muro,
de levar à boca
um punhado de cerejas pretas,
de esconder o sorriso no bolso,

certa maneira de assobiar às rolas
ou então pedir um copo de água,
e dormir em novelo,
como só os gatos dormem.

Tudo isso eras tu, sujo de amoras.

O SORRISO
Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

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