segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Publicação

- É chegada a minha hora,

balbuciou a velha, que se encontrava havia mais de três meses no seu leito, diga-se mais morta do que viva, com forças apenas para aquelas palavras, como se as tivesse poupado para, desse modo, dar por anunciado o fim da mulher mais beata que o mundo alguma vez conhecera, estranha pronúncia foi aquela, a penúltima, uma cabala de uma morte evidente, porque a última da morte ninguém sabe, mas todos sabiam que era sem dúvida o adeus esperado da mais abnegada pessoa que a igreja e a sociedade alguma vez baptizaram naquelas ilhas abandonadas, tratava-se da mulher mais desinteressada pela vida que a vida alguma vez recebera, aquela que entre todas este mundo menos amara, aquela que mais desprezara o corpo e os seus prazeres, a mais temente a Deus de todas as criaturas, a grande pedra da igreja local, a catequista a tempo inteiro e por todo o tempo da diocese, a mais admiradora de Jesus que nenhuma outra cristã, a conhecedora sem par das Escrituras, a servidora ímpar dos pobres, o exemplo absoluto dos fiéis, mulher que, para além de dedicar toda uma vida a preparar-se para um dia subir ao céu e viver à direita dos apóstolos, também era uma estudiosa incomparável da morte, de todas as formas da morte, porque queria saber bem como morrer para poder alcançar a vida eterna, o que lhe dera conhecimentos inéditos e lhe permitira decifrar todas as etapas por que passam todos os mortos, e dizia que as fases da moribunda são seis, a Dúvida, o Desespero, o Apego, a Impaciência, que é o momento da cólera, o Orgulho, e o Abandono, assim bem contadinhas, mas isso não lhe fazia ter menos medo à morte, mesmo crente da sua inabalável esperança de ser ressuscitada de entre os mortos no dia do Juízo Final, objectivo para o qual dedicara todos os seus anos de menina, a sua mocidade, a sua virgindade, a sua irmandade, o seu corpo, e a sua implacável devoção de freira, tudo sacrificara para um dia morrer bem, de tal modo que, quando ela emitiu a custo a frase É chegada a minha hora, as netas que com ela estavam interpretaram aquilo como sendo finalmente a renúncia da vida e a aceitação da morte, e, na verdade, era o que ela queria dizer, embora seja de um paradoxo abissal o desapego à vida e o medo à morte, mas, para a glória da sua coragem, a velha acabara de pronunciar a frase, dita entre os dentes e o delírio, é verdade, mas com a última das coragens e, nesse momento, ali ante as suas netas, sentiu-se a ser elevada às alturas, que uma nuvem a recebia, ocultando-a, e ela então não se lembraria de mais nada, como é natural, entrara já no túnel da morte e qualquer lembrança nessa hora desencadeia um apego atroz à vida,
- Valha-nos Deus, chamem o médico, chamem o médico,

gritaram as netas agarradas à cadeira onde vinham passando o tempo, revezando-se havia três meses, pois a velha nunca quisera estar só e arranjou aquele assento de cabeceira que, na linguagem da morte, se chama cadeira de acompanhamento, coisas que ela aprendera no livro do padre ortodoxo Jean Yves Leloup, ao decidir que queria ter o mesmo trato que ela sempre dispensara aos moribundos que acompanhava em todas as suas fases, sete a saber, a Compaixão, a Invocação-Evocação, a Unção, a Escuta, a Bênção, a Comunhão Eucarística e a Contemplação,

- Não chamam nada, na minha morte mando eu,

Novíssimo Testamento de Mário Lúcio Sousa

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